terça-feira, 25 de julho de 2017

O Martelo das Feiticeiras: o manual que condenou milhares de mulheres à fogueira e o gênero das divindades.


Queimem a bruxa ! Queimem a bruxa !! Este era um coro recorrente em várias praças espalhadas pela Europa no período da renascença. Ao mesmo tempo que a sociedade europeia acompanhava feitos que entrariam para a história, como as grandes viagens marítimas descobrindo novos mundos e a ascensão da burguesia, as mulheres ardiam em chamas nas fogueiras da inquisição sob a acusação de bruxaria.

O imaginário construído desde o medieval cristão imprimia nas mentalidades a imagem de mulheres que estabeleciam pactos com o demônio através do prazer do sexo, que ganhavam poderes mágicos de causar doenças aos homens, crianças, animais e de levar pragas às colheitas. Eram as bruxas que nas madrugadas voavam pelas aldeias e vilas montadas em vassouras e realizavam cultos pagãos dentro dos bosques.

A perseguição e julgamento das mulheres acusadas de bruxaria eram realizados pela instituição eclesiástica conhecida como o Tribunal do Santo Ofício ou, apenas, Inquisição. Naquele tempo de transição entre sistemas econômicos, do modelo feudal para o capitalismo, a inquisição serviu como moduladora das massas que precisavam ser domesticadas para formar uma mão-de-obra dócil. Por isso, homens e mulheres morreram condenados pelos juízes religiosos da inquisição. Os homens eram acusados de heresia e as mulheres de bruxaria. Ocorre que o número de mulheres assassinadas foi muito maior que o de homens. Dos casos de condenação à morte, uma média de 75% eram de mulheres. Em alguns locais, como na Bélgica, as mulheres constituíram 90% dos processos. Estima-se que mais de 100 mil delas foram torturadas e queimadas.

Naquela época, o Papa Inocêncio VIII havia nomeado dois monges dominicanos, Heinrich Kramer e James Sprenger, para processar e julgar as acusações de feitiçaria na Alemanha. Estes dois monges escreveram em 1484 um manual que serviu de referência para os demais julgadores da Santa Inquisição. Esse documento recebeu o nome em latim de Malleus Maleficarum, que em português corresponde a "O Martelo das Feiticeiras". Esta obra funcionou durante 4 séculos como manual oficial do estado teocrático para realizar a caça às bruxas.

O Malleus Maleficarum se dividia em três partes. Na primeira, os dominicanos ensinavam aos juízes como reconhecer uma bruxa em suas atitudes e seus disfarces. Na segunda, explicava todos os males que as feiticeiras poderiam infligir através das bruxarias e encantamentos e sobre os métodos de proteção. Na última parte, traziam as formalidades do processo no que tange à inquirição e condenação das acusadas.

O fato da mulher ser o foco principal do tribunal residia num certo protagonismo que a mulher ainda trazia consigo de tempos imemoriais das sociedades humanas. O terror da inquisição resultaria, por consequência, em tornar o gênero feminino e o seu corpo submisso à nova ordem do patriarcado.

Na tradução brasileira do "Martelo das Feiticeiras", colocado no mercado pela Editora Rosa dos Ventos, há uma pequena introdução, muito interessante, concebida pela escritora e economista Rose Marie Muraro, que também foi uma reconhecida intelectual do movimento feminista brasileiro. Nesta introdução, a escritora traz o percurso histórico das sociedades humanas, quanto às relações entre gêneros, desde o surgimento do homem até o período moderno e a repercussão que os diversos arranjos sociais tiveram na concepção da imagem mental das divindades. Em períodos que a humanidade se organizou de forma matricêntrica as divindades supremas eram percebidas com formas femininas; por outro lado, quando passamos ao patriarcado a imagem do ser supremo passou a ter representação masculina.

Segundo Rose M. Muraro, durante todo o tempo que compreende  do surgimento do ser humano no planeta até os dias atuais, em boa parte as sociedades se constituíram de forma matriarcal. No vasto período de tempo antes do homem dominar as técnicas da fabricação de armas com pedras e madeira, tanto a mulher como o homem viviam de forma igualitária. Pois a economia de coleta e de caça de pequenos animais não importava na predominância de um dos sexos sobre o outro. Nesse período, o gênero masculino também ainda não havia entendido a sua participação na geração da vida. Por isso, a mulher ganhou um ar sagrado, pois ela era capaz de gerar a vida. A capacidade de gerar a vida era associada pelos primeiros grupos humanos ao poder de fertilizar o solo e os animais. Era um poder dado pelos deuses à mulher. Por isso, foi um período em que a mulher gozava de uma posição privilegiada no arranjo social.

Posteriormente, com a escassez de alimentos, houve a necessidade do ser humano dominar a construção de armas para realizar a caça de animais maiores e, também, para usá-las nos conflitos entre diversos grupos pela posse dos territórios de caça. Ao mesmo tempo, o homem entendeu a sua participação biológica na procriação. Neste momento ocorreu a distinção entre homens e mulheres, com prevalência do sexo masculino, que chegou até nossos dias. Iniciou-se o tempo do patriarcado.

Estudando as diversas manifestações religiosas da antiguidade, a autora conseguiu visualizar a modificação do discurso religioso conforme a sociedade se transformava. Nas tradições mais pretéritas, os mitos fundadores delegavam a uma deusa-mãe a criação do universo; como no caso da deusa Géia para os gregos e de Nanã Buruquê do mito Nagô, que originou o candomblé. Depois, há uma fase onde aparecem deuses andróginos, como no hinduísmo e no conceito do yin e yang chinês, onde os princípios masculino e feminino governavam o mundo em conjunto. Posteriormente, há uma nítida transição na questão do gênero divino em tradições onde a criação se inicia com uma deusa que vem a ser destronada por um deus masculino. Nestes, temos como exemplo a mitologia sumeriana em que a deusa Siduri reinava em um jardim das delícias sendo destronada pelo deus solar e, também, na tradição asteca a Mãe Terra, de nome Xoxiquetzl, é destronada pelo deus Huitzilopochtli. Por fim, a partir do segundo milênio antes de Cristo não se encontram mais registros de deusas mulheres na mitologia da criação. As tradições persa e cristã são exemplos.

Concluindo, seria muito edificante à humanidade se os sexos, feminino e masculino, convivessem em harmonia e cooperação, conforme prega a essência original da ideologia feminista que busca a igualdade entre os gêneros. Porém, se para alguns homens a palavra "feminismo" for o problema,  que sejamos, ao menos, humanistas.

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