domingo, 16 de julho de 2017

Escravidão moderna: a menina que foi trocada por uma vaca.


Em local próximo de Aracaju, uma menina de 12 anos foi trocada, pelos pais, por uma vaca. Os pais receberam o animal de um comerciante de 55 anos que já mantinha um relacionamento com a menor havia 6 meses. Os agentes do Conselho Tutelar foram informados e tomaram as providências cabíveis. O comerciante foi preso e autuado por estupro de vulnerável e os pais também serão responsabilizados. A menina foi levada para um abrigo sem entender o alcance da questão. Ela chorou e disse gostar do senhor que levava presentes.

Esta notícia foi veiculada por vários órgãos de imprensa, inclusive nos telejornais. Apesar do alarme que esta notícia possa nos causar, isto é muito comum no interior e localidades pobres do Brasil e, também, em outros países onde há grande miséria. A vida humana é transformada em moeda de troca.

Nas pequenas cidades esta é uma das principais formas de captação de moças para os bordéis da região. O cafetão ou cafetina vê uma jovem, filha de campesinos pobres, que interessa ao mercado do sexo e alicia a família com presentes e a promessa de que a filha não passará fome e privações. Sorte ,um pouco melhor, têm as jovens que são captadas para trabalhos análogos ao de escravo em casas de famílias de classe média alta.

Era muito comum nas décadas de 80 até meados dos anos 90 que famílias de classe média "pegassem para criar" meninas pobres de famílias que estavam em situação de extrema pobreza e sob risco de fome. Eles nunca adotavam oficialmente estas meninas. Sob o manto da ajuda humanitária se escondia uma relação de escravidão. Com o advento da instituição do Estatuto do menor e outras leis que baniam o trabalho infantil, este tipo de exploração diminuiu nas cidades. Contudo, nas regiões rurais, onde a fiscalização é mais precária, continua até os dias atuais.

Tenho quase certeza que presenciei um caso desses. Na juventude namorei uma colega de faculdade que possuía entre as amigas uma moça que dizia ter uma "irmã de criação".  Ao frequentar a sua bela casa de classe média alta, em bairro nobre, com uma grande piscina quase semiolímpica, conheci a jovem negra tratada carinhosamente como "irmã". Acontece que via sempre a irmã de criação fazendo o trabalho duro da casa.

Nesses casos, se estabelecia um senso comum de ajuda humanitária. Muitas pessoas não percebiam problema algum neste tipo de exploração. Achavam mesmo que entre passar fome ou trabalhar em situação análoga à de escravo numa casa de família a segunda opção era uma dádiva. Constitui o tipo de pensamento que acaba sendo gerado dentro de sociedades adoecidas por conta das gritantes diferenças sociais.

Com a vigência de leis trabalhistas mais duras e, principalmente, o investimento social governamental  em bolsas para famílias em situação de risco alimentar houve diminuição notória desses casos. Atualmente, quando o governo reduz os investimentos sociais há o risco de tais relações novamente se multiplicarem pelos país.

A análise moral das partes envolvidas neste tipo de exploração é outro tema que me parece complexo.

No caso da pedofilia, daqueles que se aproveitam da miséria alheia para obter esse tipo de vantagem, é notória a falta de caráter e total degeneração moral. Já aqueles que criavam uma jovem pobre mas explorando seus serviços domésticos sob o discurso de que estavam dando condições a uma sobrevivência mais digna do que a da família, a fala torna-se hipócrita quando os mesmos não apoiam medidas socais e políticas que visam distribuir renda e minorar a situação de extrema pobreza encontrada no país. Por isso, alguns analistas declaram que é interessante ser classe média em países subdesenvolvidos, pois possuem regalias que não teriam sob outras condições econômicas. Em países onde o capitalismo é mais equilibrado, como na Finlândia e outros países nórdicos, a classe média sequer tem acesso a empregadas domésticas.

Quanto à valoração da atitude dos pais, a situação de análise é ainda mais difícil. Se analisarmos sob o nosso lugar de fala fica fácil condená-los sumariamente. Porém, muitas destas famílias estão em estado desesperador. Não há comida na mesa para alimentar todos os filhos. Dar um filho para alguém criar garante sua sobrevivência alimentar e um pouco mais de comida para os demais que ficaram. É uma escolha muito difícil. E em situações de desespero somos levados a agir com outras categorias de pensamento.

Essa discussão me faz lembrar da obra "O Caso dos Exploradores de Cavernas" de autoria do professor Lon L. Fuller, que foi professor na Faculdade de Direito de Harvard. Neste livro, o autor expõe as controvérsias de um julgamento fictício sobre o caso de exploradores de cavernas que assassinaram um companheiro. Acontece que numa das explorações houve um deslizamento de terra e rochas que aprisionou a equipe de exploradores. O deslizamento foi tão grave que mesmo usando modernos equipamentos as equipes de resgate levariam muitos dias para desobstruir a passagem. No interior da caverna havia passagem de ar e uma mina d'água, mas nenhuma alimentação. O grupo não resistiria e morreria de fome antes da chegada do resgate. Então, os exploradores pensaram numa saída extrema, fariam um sorteio e aquele que fosse sorteado morreria para seu corpo servir de alimento aos demais. A maioria votou a favor do sorteio. O sorteado foi um dos que apoiaram a medida, mas assim que sorteado voltou atrás na sua opinião. Mesmo assim foi morto pelos companheiros. Depois de resgatados, os sobreviventes foram levados a julgamento pelo assassinato do colega. Então, ocorre um grande debate entre as teses da acusação e da defesa. Nós que vivemos em sociedade estamos sob o chamado "estado de direito"; ou seja, precisamos seguir as regras jurídicas impostas pela sociedade. E o homicídio é considerado crime. No entanto, quando os exploradores estavam presos num local onde a sociedade não podia oferecer qualquer ajuda imediata, esta mesma sociedade poderia exigir que eles se portassem segundo suas regras jurídicas e socais? Por outro lado, os exploradores aprisionados, onde a sociedade não chegava, estariam em "estado de natureza", quando matar para sobreviver não é uma atitude reprovável ?

As duas teses, estado de direito e estado de natureza, no caso engendrado pelo autor, tem sido motivo de calorosos debates por várias gerações de alunos das faculdades de direito pelo mundo. O principal ponto da obra é mostrar aos postulantes a cargos de operadores jurídicos que muitas vezes precisamos nos abstrair do nosso local social e de fala ao analisar as razões do outro. Este é um ensinamento que deveria ser levado a todas as pessoas.

Matéria sobre a menina trocada pela vaca no jornal "Estadão":
http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,menina-e-trocada-por-vaca-em-aracaju-imp-,1138426

Livro "O Caso dos Exploradores de Cavernas", gratuito para baixar em pdf:
http://www.fkb.br/biblioteca/Arquivos/Direito/O%20Caso%20dos%20Exploradores%20de%20Cavernas%20-%20Lon%20L.%20Fuller.pdf

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