quinta-feira, 8 de junho de 2017

As pessoas em situação de rua e a escrita como ato de resistência e libertário.


Confesso que a primeira vez que passei por ela devo ter sido indiferente como acontece com a maioria das pessoas. Não aquela indiferença que se traduz na invisibilidade das pessoas que estão vivendo nas ruas. Pois eu não a percebi, de início, como em situação de rua. Era apenas alguém sentado no meio fio, escrevendo numa folha de papel e, provavelmente, matando tempo enquanto esperava alguém ou algum horário.

Somente a partir do momento que a encontrei mais de uma vez e em outras ruas do bairro, em horários diversos, que entendi se tratar de alguém que havia perdido uma das coisas mais caras à dignidade da pessoa que é a moradia. Ela não se apresentava suja ou maltrapilha, mas em vestes bem humildes. Sempre acompanhada de algumas bolsas bem gordas. E o que mais me chamou a atenção é que quase sempre estava sentada e escrevendo em um bloco de papel.

Desde criança sempre estive em contato com o papel e a caneta ou lápis. Seja no colégio, na universidade, depois no escritório ou em sala de aula. Mesmo assim, não me tornei um bom redator. Porém, nós que estamos envolvidos com a redação de textos ficamos curiosos quando observamos alguém a escrever. E, por isso, numa outra oportunidade passei mais rente a ela para tentar observar o que estava escrevendo. Não deu para ler a página escrita, mas sem dúvida eram palavras formando orações e frases. Não se tratava de meros rabiscos ou desenhos.

Mas sempre que observamos alguém, acaba como grande a chance de também estarmos sendo observados.  E numa próxima vez que passei ela arriscou me solicitar uma ajuda para sua refeição. Prestei um auxílio e tentei emendar, ainda que de forma constrangida, uma conversa a respeito de sua situação. Essas pessoas invariavelmente têm uma história triste que poucos estão dispostos a ouvir. E, por fim, ficam perdidas na multidão indiferente. No caso dela, não se encontrava a tanto tempo nesta situação e contava com a sorte de ter uma casa e uma igreja onde permitiam que realizasse sua higiene e lavasse as roupas no tanque.

Aproveitei e disse que estava sempre a vendo redigindo.  Perguntei se fazia poesias. Ela respondeu que no início escrevia de tudo, qualquer coisa, podia ser uma receita de bolo que lembrasse, uma manchete de jornal, versos ou o que fosse, o importante era permanecer escrevendo. A prática da escrita valia como estratégia nas ruas. Enquanto escrevia os passantes não a olhavam como se fosse uma mendiga. Outras pessoas em situação de rua não a importunavam. E mesmo a guarda ou a polícia não a incomodavam. Nem sempre os agentes públicos estão preparados para agir de forma humana com quem está vivendo na rua. Todos passavam e tinham aquela impressão que era só mais uma pessoa aguardando um certo horário ou esperando alguém.

Depois, ela percebeu que naquela situação o papel era o único amigo possível. Quase ninguém está disposto a conversar com moradores de rua. Mas o papel estava disponível a ouvir tudo que tinha a dizer. Descobriu que o papel também podia servir de máquina do tempo, sendo transportada para outras épocas em que viver possuía seu aconchego. Colocava no papel as histórias que sua avó contava em sua infância. Conforme redigia era como se escutasse a voz da sua querida avó. Passou a redigir conversas entre ela e seus antigos colegas da classe de estudo.

A atividade da escrita a salvava das mais diversas formas. A mantinha a salvo do olhar de desprezo dos passantes, de ser importunada, de possível violência de autoridades e, principalmente, da solidão. Outro dia a presenteei com um caderno e uma caneta. Entendi que estes itens, para ela, se tornaram tão vitais como um copo de leite e pão.

Eu não a vejo tem algumas semanas. Talvez tenha se mudado para não ficar marcada. Há um outro morador de rua que está sempre numa mesma esquina. Diferente dela, este outro se encontra num estado mais precário e de notória mendicância. Está sempre "largado" na calçada em frente à uma loja que se encontra fechada por conta da crise. Ontem, porém, aconteceu algo inusitado. Eu passei por lá e ele se encontrava sentado com um bloco e uma caneta. Teria aprendido com ela ?

Antes de redigir este texto, resolvi buscar na internet se havia algum outro neste sentido. Descobri artigo de uma psicóloga e escritora falando de uma mendiga que vive nas ruas de Copacabana e fica na calçada, ao lado de um luxuoso café, com um caderno escrevendo poesias e fumando.

O caso dessa moradora de rua que narrei me ajudou a entender melhor um antigo mendigo que vivia nas ruas da Urca. Era alto, forte e sempre maltrapilho e sujo. Eu nunca ouvi a voz daquele sujeito. Há mendigos que falam sozinhos e até gritam vez por outra. Aquele viveu a vida calado. Nunca mais o vi. Mas ele tinha a mania de rabiscar palavras no chão das calçadas. Sempre havia caçambas com entulho de obras realizadas nalguma casa ou prédio. Ele pegava pedaços de mármores ou azulejos e os usava para riscar palavras nas calçadas. Era sua única forma de expressão. Muitos moradores deviam não gostar de vê-lo "sujando" a calçada. Contudo, aqueles riscos provavelmente serviam para que percebesse a si próprio. Que podia afetar o ambiente a sua volta. Que não era invisível.

Hoje se discute muito  a questão das minorias. A própria democracia se define como sistema que salvaguarda os direitos das minorias. O mendigo é o polo mais agudo desta relação. Sobre suas costas pesa toda a opressão do sistema, que o transforma neste ser invisível. Para esta gente, abrir os olhos todos os dias pela manhã já representa um verdadeiro ato de resistência.

Participe do grupo "prophisto" de história geral & Brasil no facebook:
https://www.facebook.com/groups/prophisto/


Nenhum comentário:

Postar um comentário