sábado, 10 de junho de 2017

A contribuição do regime militar para o divórcio entre a população e os órgãos e funcionários públicos.



No contexto político atual presenciamos o esforço do governo para precarizar, desmontar e privatizar os mais diversos órgãos públicos que atendem interesses do país e da população. Esta postura vai ao encontro da agenda de implementação da política do estado mínimo, pregado pelas correntes neoliberais. Segundo esta visão, o governo deve estar presente o menos possível na vida econômica do país e a rede de órgãos que promovem o estado de bem estar social deve ser extinta ou sofrer radical diminuição. Neste sentido, vários órgãos públicos estatais e seus agentes ou funcionários se encontram ameaçados. Por isto, as associações e sindicatos de funcionários vêm tomando as ruas e realizando diversos atos, passeatas e protestos. Contudo, não há sinal de retorno da maior parte da população em relação a estes movimentos. Não temos visto a adesão da população, com raras exceções, às causas defendidas pelo funcionalismo público.

Os motivos pelos quais ocorre esta falta de empatia e diálogo entre a população e os órgãos públicos são de ordens variadas. A própria divisão em classes sociais, em um país de contrastes tão grandes, já é suficiente para causar certo distanciamento entre estes setores. Uma vez que os funcionários da burocracia pública constituem uma classe média que é vista como privilegiada. Num país onde a maioria da população não tem certeza da manutenção do emprego formal e de sua subsistência digna, a estabilidade funcional, ainda que justa para o exercício do munus público, é percebida como privilégio e não como garantia.

No entanto, vamos abordar um outro aspecto em que os próprios funcionários concorreram para a configuração desta situação.

Neste sentido, trazemos à luz desta reflexão o golpe militar ocorrido no Brasil em 1964. Com a deposição, pela força das armas, do presidente João Goulart, tivemos a implementação de um governo autoritário que foi de 1 de abril de 1964 até 15 de março de 1985. Foram 21 anos de um regime militar que deixou muitas marcas e heranças em diversos setores da vida nacional. A característica principal dos regimes autoritários é justamente o uso da opressão pela força. O governo deixa de ter uma relação de equilíbrio e dialética com seus administrados. É lógico que todo governo tem a premissa de uso dos poderes constituídos para exigir o cumprimento, por parte dos cidadãos, de suas posturas; porém, nos governos democráticos o poder do governo é originário da vontade popular. Assim, lembramos do preceito constitucional democrático sempre mencionado pelo jurista Sobral Pinto de que "todo poder emana do povo e pelo povo deve ser exercido". Desta forma, podemos dizer que o poder do Estado no regime democrático tem fulcro institucional mas também contratual (entre governantes e governados), enquanto que nos regimes autoritários se dá pela opressão. No regime militar essa relação entre governo e população  se desequilibrou e degenerou. Tivemos inúmeros exemplos da truculência com a qual os generais e órgãos militares tratavam entidades civis, jornalistas e outras pessoas que demandavam alguma solicitação ou crítica em relação ao regime.

Acontece que esta truculência exercida pelos agentes militares acabou contaminando boa parte da administração pública. Outros órgãos, agências e funcionários, que não eram militares, passaram a reproduzir o mesmo comportamento em relação às pessoas que compareciam a estas repartições públicas para solicitar seus direitos. Passou a ser comum, apesar de algumas exceções, nos depararmos com funcionários que no atendimento à população se apresentavam de forma grosseira e arrogante. O funcionário público assumia a mentalidade de que se encontrava num patamar especial e superior ao público em geral. E, assim, esquecia a essência do significado de ser um "servidor" público.

Desta forma, os órgãos públicos que deveriam ser locais de acolhimento se transformaram em ambiente hostil na percepção popular. O sentimento de pertencimento que devia existir entre população e as repartições dos órgãos públicos foi se desconfigurando. O "pertencimento" é um conceito sociológico que explica a sensação de que precisamos nos sentir como pertencentes a determinado lugar e, ao mesmo tempo, que este dito lugar também nos pertence. Sem o sentimento de pertencimento o povo deixa de nutrir laços de solidariedade em relação às repartições e seus funcionários. Por outro lado, a sensação de superioridade do funcionário em relação ao público forneceu terra fértil para o reforço das práticas clientelistas e da corrupção no seio da administração pública.

No atual contexto, quando os funcionários necessitam da adesão popular à causa da proteção dos serviços públicos contra as privatizações, não está havendo este retorno. Uma das exceções a esta regra são as entidades educacionais públicas e professores, que contam com um carinho especial da população, mas os demais serviços públicos são vistos com muita desconfiança pelo cidadão comum.

Pelo tempo que acabou o regime militar, a maioria dos servidores que trabalharam naquele tempo e dos que entraram no serviço público no decorrer do golpe ou já se aposentaram ou estão em vias de se aposentar. Contudo, essa mentalidade e a cultura que se cristalizou no serviço público permanecerá por bastante tempo. Os processos mentais no âmbito da cultura demandam uma longa duração para sofrerem mudanças.

Concluindo, salientamos que infelizmente a maioria das categorias funcionais não consegue realizar esta autocrítica. Ao serem atacados pela onda neoliberal, muitas associações e sindicatos de funcionários ainda preferem organizar comissões para fazer lobby junto a políticos do que se aproximar da população e quebrar aquela barreira que se estabeleceu entre eles. Não entenderam que não possuem nada a oferecer aos políticos profissionais bancados pelas grandes corporações. Ao contrário, o servidor público tem tudo a oferecer ao povo trabalhador.

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