Durante o regime nazista na Alemanha, o governo pretendeu realizar uma
"limpeza" literária e intelectual. Agentes políticos do governo editaram
"listas negras" contendo relações de livros, considerados
inconvenientes, que não deveriam ser lidos. Este movimento se
radicalizou até ocorrerem, em 10 de maio de 1933, grandes queimas de
livros nas principais cidades universitárias alemãs. Este fato foi
reproduzido no cinema pelo filme "A menina que roubava livros". Obras de
vários autores reconhecidos internacionalmente viraram cinzas, tais
como: Albert Einstein, Stefan Zweig, Heinrich e Thomas Mann, Sigmund
Freud, Erich Kastner, Erich Maria Remarque e Ricarda Huch. A obra do Dr.
Freud, que hoje é um dos pilares da psicologia moderna, chocava por
conta de sua teoria sobre a sexualidade infantil.
Muitos anos depois, no Brasil atual, cresce um movimento de políticos conservadores e ligados a bancadas religiosas que se rogam no papel de censores dos livros didáticos distribuídos pelo Ministério da Educação. Desta forma, vai sendo construída nossa lista negra literária. A obra da vez trata-se de um livro de contos populares para crianças, o título da obra é "Enquanto o sono não vem", que tem a autoria de José Mauro Brant. O livro é um apanhado de contos de vários países e culturas.
Alguns professores esboçaram estranhamento em relação a um dos contos presentes no livro. Isto chegou a certos políticos que aproveitaram para fazer sua aparição através da censura moral do que propriamente pela atividade legislativa de apresentar projetos interessantes ao desenvolvimento da nação. Acontece que todo livro indicado pelo MEC passa pela análise de especialistas no assunto. São comissões de pedagogos e professores que avaliam se um material é de interesse pedagógico ou não. O livro em questão, por exemplo, foi aprovado pelo Centro de alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da UFMG. Que após a celeuma fez uma nova análise e reiterou seu parecer anterior. Entendemos que esse deve ser o trâmite correto. Se na ponta, os profissionais que vão trabalhar com a obra têm algum questionamento, deveria ficar exclusivamente por conta de profissionais capacitados do ramo da pedagogia o parecer sobre o aproveitamento ou recolhimento da obra.
O conto em questão apresenta o título de "A triste história de Eredegalda". Trata-se de uma narrativa em que um rei deseja se casar com a própria filha. Diante da recusa da filha, o rei manda que a prendam na torre sem o direito a beber água. Sob a angústia da sede intensa a moça acaba aquiescendo em relação ao casamento com o pai. Porém, neste instante o rei desiste e fez uma competição entre cavaleiros para entregar a mão da filha ao vencedor. O que não se realiza pois Eredegalda acaba morrendo.
Assim como aconteceu com Freud no início do século passado, temas relacionados à sexualidade ainda consistem tabus hoje em dia.
Curioso que esta temática do pai que deseja realizar algo contra um filho e que se arrepende no último momento me remeteu à história bíblica em que Deus pede que Abraão sacrifique o seu filho. Talvez, pela ótica dos nossos parlamentares, fosse o caso de proibir que menores de idade tenham acesso a bíblias e frequentem igrejas. Afinal, a Bíblia também apresenta um rol de histórias impactantes, onde temos pais contra filhos, filhos contra pais, irmão contra irmão, incesto, prostitutas, etc. Porém neste caso que envolve o livro sagrado, acredito que os políticos religiosos darão uma resposta muito acertada, que as histórias bíblicas necessitam de um tratamento hermenêutico, realizado pelo sacerdote, através do qual todos poderão se beneficiar das lições que delas são extraídas. Só que a miopia intelectual não permite que essas mesmas pessoas entendam que o mesmo processo se dá com os contos. Tais histórias deverão ser trabalhadas com os alunos através de um mediador, o pedagogo, que vai conduzir a uma leitura positiva destas diversas histórias.
Aliás, a principal função dos contos de fadas é provocar a reflexão sobre diversos assuntos. Contos de fadas não são histórias simplistas e bonitinhas. São obras complexas que trazem, numa linguagem acessível às crianças, todos os tipos de relações humanas que elas enfrentarão na vida, desde afetos e amores até os atos de violência, selvageria, ambivalência e demais pontos obscuros da alma humana. Os professores que sentem desconforto com estes contos deveriam ler a obra "A psicanálise dos contos de fadas", do psicólogo Bruno Bettelheim, que faz uma análise da importância destas histórias para a construção e desenvolvimento psicológico e social da criança.
Assisti algumas entrevistas de políticos, sobre este caso, dizendo que é por conta do material didático "inadequado" que nossa educação escolar está muito mal. Eles esquecem de dizer que a escola vai mal porque os políticos não dão o devido valor à educação. Que os mesmos políticos não aprovam leis que determinem o investimento adequado nas escolas e nos profissionais da educação. Querem com este discurso apenas tapar o sol com a peneira.
Participe do grupo "prophisto" de história geral e Brasil no facebook:
https://www.facebook.com/groups/prophisto/