sexta-feira, 16 de março de 2018

Leandro Karnal e o novo princípio processual do julgamento justo quando o advogado é caro !



Estive vendo o vídeo de uma entrevista em que o historiador Leandro Karnal analisa as sentenças condenatórias contra o ex-presidente Lula nos processos em curso. Em um dado momento, o festejado professor pontuou que iria externar um argumento "importante"! Então, apurei os ouvidos e prestei ainda mais atenção no que iria dizer o sábio palestrante. Ele, então, justificou a legitimidade das decisões pelo fato do réu contar com advogados caros no patrocínio de sua defesa; diferentemente da maioria das pessoas comuns. Karnal, como que incorporado pelo grande penalista Celso Delmanto, acabava de criar um novíssimo princípio de direito processual penal: "o princípio do julgamento justo quando o advogado cobra caro".

Irei transcrever este trecho a seguir e deixarei o link para o vídeo da entrevista ao final deste texto (sempre estimulo os leitores a ver o vídeo para garantir que não se tenha retirado a fala do seu sentido e contexto original). Palavras do professor Karnal:

"... uma coisa importante: o presidente Lula tem acesso a advogados caros, advogados de altíssimo calibre; ele tem dinheiro e recursos para se defender, ao contrário da maioria daqueles presos que estão hoje no nosso sistema prisional..."

A informação "importante" anunciada por Karnal me decepcionou. Não disse mentira, realmente os advogados do ex-presidente são causídicos de nome respeitado no meio jurídico e que devem ganhar bons honorários. Porém, esta afirmação é tão rasa que poderia perfeitamente ter sido articulada por uma criança a partir dos 12 anos de idade.

Ora, o estimado mestre incidiu em uma prática que jamais pode ser efetuada por um historiador, que é a de desconsiderar o contexto histórico de um fato em análise. Creio que um aluno que completou o primeiro semestre da graduação em história não poderá mais cometer este erro crasso.

Quando compara o processo contra Lula aos demais casos corriqueiros, o historiador está se apartando das construções políticas, econômicas, eleitorais, sociais, dentre outras,  que envolve especificamente o caso do ex-presidente Lula. O processo contra Lula tem repercussão direta no futuro do país. Trata-se de uma importante liderança pública que se colocou como pré-candidato ao pleito presidencial e que lidera amplamente as pesquisas de intenção de voto. O caminhar deste processo poderá ter influência direta sobre a soberania popular de escolher o seu governante.

Adicione-se o fato que amplos segmentos entendem que vivemos uma ruptura democrática. Que estamos em meio a  uma espécie de golpe continuado. Neste sentido, várias universidades acrescentaram, nos cursos de ciências políticas, uma disciplina sobre o golpe de 2016.  

Desta forma, reduzir a análise das sentenças contra Lula ao preço do contrato de prestação de serviços advocatícios parece-nos algo muito distante do estudo que este fato, que entrará para os livros de história, merece. 

Ainda que o citado mestre não concorde com a narrativa da ocorrência de golpe, deveria considerar a possibilidade de interferência dos tribunais no resultado eleitoral. Como muitos pesquisadores dizem: uma judicialização da política ou ativismo judicial.

De fato, já ouvi o mesmo professor dizendo que não há que se falar em golpe no Brasil atual. Acredita que vivemos em normalidade democrática. Partindo desta ideia, sua fala torna-se extremamente deselegante contra os membros do judiciário. Pois insinua que em tempos de normalidade democrática não se pode confiar nas sentenças dos juízes, que julgam de acordo com o patrimônio do advogado.

Por outro lado, o historiador sabe muito bem que o sistema judiciário pode sofrer degenerações em determinadas conjunturas e ocorrer o chamado juízo de exceção, que é muito comum tanto nos períodos revolucionários quanto nos golpes de Estado. Muitos reis, rainhas e outras pessoas muito bem aquinhoadas financeiramente perderam, literalmente, a cabeça ao serem julgadas por tribunais de exceção. 

É fato que há numerosos especialistas da área jurídica apontando supostas irregularidades nos processos contra Lula e da lava-jato. Logo de início, o primeiro ato processual já é criticado como eivado de irregularidades, que é o caso da não observância do princípio do juiz natural. Se as denúncias contra Lula pairam sobre duas propriedades no Estado de São Paulo, não caberia a indicação de um juízo no Paraná. Além desta, numerosos pontos no rito processual são alvo de críticas; ou seja, o princípio do devido processo legal estaria sendo desrespeitado ou, no mínimo, relativizado. Poderíamos elencar, aqui, uma grande lista de juristas  que apontam tais irregularidades. Vou citar o emérito professor de direito processual penal da UERJ e membro aposentado do Ministério Público do Rio de Janeiro, professor Afrânio Silva Jardim (deixo o link para um texto dele, sobre o juiz natural, ao final do texto). Quanto à atuação do STF, também há muitas críticas de eminentes juristas a respeito de um possível comportamento contraditório do tribunal máximo, que estaria julgando casos semelhantes de forma diversa, apontando para uma seletividade nos julgamentos, como vem analisando, entre outros, o constitucionalista Conrado Hübner Mendes, que é professor na USP. Ainda há inúmeros especialistas da área que acreditam que o ex-presidente é vítima de um lawfare (uma espécie de guerra assimétrica em que o réu é considerado como inimigo e a ordenação jurídica utilizada como instrumento de perseguição).

No entanto, não podemos cobrar conhecimentos jurídicos extremamente técnicos do historiador Karnal, por mais enciclopédico e holístico seja o seu cabedal de conhecimentos. Afinal, já pude assistir a vídeos de Karnal palestrando sobre história, psicologia, autoajuda, religião, felicidade, depressão, vendas, etc...

Por outro lado, também constatamos diversos outros segmentos acadêmicos lançando severas repreensões a toda essa atividade judiciária. 

O respeitado jornal Le Monde Diplomatique Brasil, deste mês (ano11 / número 128), traz como capa o título "tribunais de exceção". A arte da capa sugere um julgamento medieval por enforcamento. Embaixo, a plebe se delicia com os horrores do enforcamento trajando camisas da CBF, acima do cadafalso estão duas importantes figuras do judiciário nacional sendo escoltados por soldados do exército, instituição legitimadora do tribunal de exceção. Ainda podemos ver uma estrutura de madeira em forma de pato, uma referência à FIESP. No interior do jornal várias matérias, com diversos especialistas (cientistas políticos, sociólogos e filósofos), comentando a fragilidade e suposta condução política do processo.  

Luis Felipe Miguel, professor de ciências políticas da UnB, criador da primeira disciplina acadêmica sobre o golpe de 2016, assinou matéria no Le Monde (pags 4 e 5), onde analisa o judiciário como protagonista numa agenda de luta de classes e legitimador dos retrocessos para a classe trabalhadora e outros grupos subalternos. Em outra matéria, a jornalista Grazielle Albuquerque (doutoranda em ciências políticas na Unicamp) discorre sobre a judicialização da política. Aponta o judiciário como um ator completamente envolvido nas decisões políticas do país.

Ainda no jornal Le Monde, Márcia Pereira Leite, professora do departamento de Ciências Sociais da UERJ, e  Juliana Farias, da Unicamp, assinam conjuntamente artigo onde apontam que os ilegalismos, recorrentes no trato do Estado com as comunidades populares,  agora transbordam e atingem personalidades políticas de determinado espectro ideológico. Em certo ponto do artigo, parece até (embora não seja) que responderam ao professor Karnal, quando traçam uma comparação entre Rafael Braga e Luis Inácio Lula da Silva. O primeiro é catador de materiais recicláveis e o segundo ex-presidente da república.  Apesar da distância social, ambos respondem processos onde há mais convicções do que prova substancial propriamente dita. No caso de Rafael, foi preso nas manifestações de 2013 quando portava uma garrafa com pinho-sol. Permanece preso mesmo após a perícia esclarecer que o detergente tem baixíssima capacidade explosiva e não haver prova de sua atuação em atos incendiários.

Ainda há uma corrente que sustenta que o Brasil, assim como outros países do terceiro mundo, estão sofrendo uma interferência externa em sua soberania que foi denominada "guerra híbrida".  Nela, o judiciário é instrumentalizado para perseguir lideranças políticas nacionalistas, com o objetivo de entregar a exploração de recursos estratégicos (petróleo e outros) nas mãos dos conglomerados estrangeiros. Provavelmente, após atingir o objetivo, aqueles membros das autarquias que funcionaram como uma espécie de "agente duplo" ganhariam a prerrogativa de ir trabalhar e morar nos países que patrocinaram o golpe.

Como se vê, com todo esse horizonte de debates, é muito primária e reducionista a afirmação de que o julgamento de Lula se resume à tabela de honorários advocatícios.


Vídeo de Leandro Karnal: as derrotas de Lula
https://www.youtube.com/watch?v=fvgiX_4CBTA 

Professor Afrânio Silva Jardim: Sérgio Moro, de forma inconstitucional. escolheu julgar ex-presidente Lula.
https://www.conjur.com.br/2017-dez-28/afranio-jardim-moro-forma-inconstitucional-escolheu-julgar-lula

Jornal Le Monde Diplomatique Brasil número 128:
https://drive.google.com/file/d/1VNyZdJFKIZxhaNaOPq5OCUjAltNPEQLm/view 

O Brasil é vítima de uma guerra híbrida:
https://www.brasil247.com/pt/247/brasil/347245/Pepe-Escobar-o-Brasil-%C3%A9-alvo-de-uma-guerra-h%C3%ADbrida.htm 

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2 comentários:

  1. Parabéns pelo ótimo texto, com fundamentação lúcida e bem articulada!
    Parece que o famoso palestrante ainda está ressentido e tentando consertar o "embrólio" (repercussão) de sua proximidade com o imperador da #farsajato...

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