Na
era das redes sociais é difícil que as pessoas se controlem para não
tornar público seus pensamentos sobre os mais variados temas. Essa
obsessão pela publicidade do pensamento está sendo boa para que possamos
desapegar de alguns mitos que acompanharam várias gerações. Sempre se
acreditou que algumas castas de pessoas estariam acima do bem e do mal.
Assim eram vistos os religiosos, médicos, magistrados, entre outros.
Porém, atualmente, as postagens de, pelo menos, uma parte dessas
categorias nos tem descortinado uma outra realidade. São pessoas que
podem conter as mesmas contradições e falhas que o resto da população. O
problema se configura quando as contradições são tão grandes que
colocam em xeque sua atuação profissional.
Um
caso desses ocorreu comigo em relação ao sacerdote que dirigia a
paróquia do bairro onde morava. Certa vez, comentando sobre a crise
econômica, o pároco deixou escapar uma mensagem muito preconceituosa, em
que culpava o governo por distribuir dinheiro para pessoas pobres e
preguiçosas. Essa postagem teve um impacto tão forte que jamais voltei
às missas naquela igreja. Não deu para que eu dividisse o padre no altar
do cidadão falando no facebook.
Temos
visto a celeuma causada por uma magistrada que postou notícias
consideradas falsas a respeito da reputação da vereadora Marielle, que
morreu esses dias vítima de crime notoriamente político. Para piorar,
ainda postou uma outra mensagem sugerindo um paredão para o assassinato
de outro político. E como nada que está ruim ainda pode ficar pior,
ainda descobriram outra postagem, da mesma juíza, expressando flagrante
preconceito contra a inclusão de pessoas com síndrome de down no
magistério.
Como
vivemos uma notória polarização da sociedade, vários perfis de uma
direita mais extremada tentaram defender a magistrada alegando que há
uma separação entre a pessoa comum - a cidadã - e a juíza. Que ela
realizou as postagens como cidadã e não como juíza. Por isso, não
caberia uma representação aos órgãos judiciários competentes para
analisar a sua conduta nas redes sociais.
O
que não imaginei é que a própria magistrada usasse esse argumento em
seu benefício. Em carta resposta enviada ao jornal "O Dia", a juíza
afirma que fez as postagens "fora das funções" e que "não era a
desembargadora que se manifestava mas uma cidadã como outra qualquer".
O
problema desse argumento é que deseja fazer acreditar que uma pessoa
qualquer, que é investida na função da magistratura, ao colocar a toga
se transforme num juiz sem nenhum vínculo com sua identidade pessoal.
Como que se ao colocar a toga deixasse o cidadão trancado num cofre. É
evidente que este pensamento é apenas um mito. Só seria possível se o
indivíduo sofresse de um sério transtorno dissociativo de identidade.
Aliás,
muitos pesquisadores das áreas das ciências humanas, como sociólogos,
antropólogos e historiadores sabem que não existe uma possibilidade de
isenção absoluta destes profissionais no trabalho de pesquisa. Por isso,
além de toda a metodologia os trabalhos ainda passam por um crivo
crítico dentro da própria academia, ganhando maior ou menor
credibilidade.
A
emenda fica pior que o soneto quando a pessoa, como cidadã, decide
realizar manifestações que são próprias do seu ofício. Por exemplo,se um
professor de história, quando não está no tablado da sala de aula, em
sua folga, comete sérios equívocos históricos, como dizer que Hitler foi
personagem da revolução francesa ou que Lampião era integrante da SS
nazista, acarretará sérias dúvidas sobre o exercício de sua atividade
profissional. A mesma coisa ocorre com um juiz que, nas horas vagas,
decide publicar juízos de valor sobre terceiros. Ora, a finalidade da
magistratura é exatamente a de formar juízos ! Desta forma, quando um
membro da magistratura sai, nas horas vagas, emitindo juízos sobre
outrem sem guardar bom senso, traz uma enorme insegurança jurídica para a
sociedade. Aqui, sequer estou entrando no caso de tais opiniões
configurarem crimes.
Contudo,
os próprios operadores do direito e pesquisadores das ciências
jurídicas sabem que as ideologias , preconceitos, moralismos, entre
outros, dos juízes, acaba interferindo nas decisões processuais. Apesar
de todo o regramento processual e material, ainda há um largo campo de
manobra para a subjetividade do magistrado se manifestar. Aliás, é por
isso que processos idênticos podem ter decisões totalmente diversas
quando interpostos a juízos distintos. Há uma excelente matéria sobre
este tema na Revista Consultor Jurídico, cujo link deixaremos ao final
do texto.
Devemos considerar, ainda, que no caso em tela tudo que um magistrado fala ou escreve fora de suas funções acaba tendo uma carga maior de legitimação frente aos leitores e ouvintes por conta do cargo que ocupa.
Concluindo,
sou apenas mais um cidadão qualquer, preocupado com um juiz qualquer em
um tribunal qualquer. Acreditando que tudo que desejamos é que o Brasil
não seja um país qualquer !
Carta da magistrada no jornal O Dia:
https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2018/03/5523378-desembargadora-nao-se-arrepende.html#foto=1
Conjur: Ideologia pessoal define decisões de juízes, diz estudo:
https://www.conjur.com.br/2012-jul-06/ideologia-pessoal-define-decisoes-juizes-estudo-ufpr
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