sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Uma pré-história brasileira ou uma história pré-colonial do Brasil ?



A pré-história brasileira e das Américas é um tema cercado de debates, controvérsias, disputas e polêmicas. Para este resultado, existe um forte ingrediente de dominação política e cultural inserido nas diversas teorias e narrativas que tentam explicar este recorte historiográfico. As narrativas eurocêntricas procuram se impor aos trabalhos de pesquisa realizados pelos pesquisadores locais. Da mesma forma, a academia norte-americana busca influenciar uma visão em que a cultura do norte seja superior às do continente sulamericano. Até mesmo a expressão "pré-história" é criticada por vários pesquisadores locais, quando aplicada ao estudo do período anterior à colonização europeia. Muitos defendem que o mais correto seria a expressão "história pré-colonial". Há, ainda, aqueles que se referem ao período anterior à chegada dos portugueses, nas terras brasileiras, como "história pré-cabralina" e usam o termo "história pré-colombiana" para o restante do continente.


O evento da invenção da escrita foi adotado pela academia como divisor de águas entre os períodos que foram designados como pré-história e história. A primeira forma gráfica que se tem notícia é a escrita cuneiforme dos sumérios, na antiga Mesopotâmia, que surgiu próxima à escrita hieroglífica do Egito. As tábuas de argila contendo a escrita cuneiforme são datadas de, mais ou menos, cinco mil anos atrás. Desta forma, no período que segue de 5 mil anos aos dias atuais temos  os tempos históricos, enquanto o vasto período anterior corresponde à pré-história. Podemos ver uma imagem de placa de argila contendo escrita cuneiforme na imagem ao lado.

Desta forma, para a academia europeia, a partir da escrita cuneiforme, ocorrida na mesopatâmia, todo o período posterior a esse evento seria considerado histórico, ainda que nem em todos os locais a escrita tenha surgido em época próxima à da escrita dos Sumérios. Por exemplo, o historiador britânico Chris Gosden afirma que os povos autóctones da Inglaterra não conheciam a escrita. Que o idioma grafado só chegou naquela parte da Europa quando as legiões romanas dominaram parte da ilha e usavam o latim na redação de seus documentos. Nem por isso. se considerou que a Inglaterra vivia na pré-história nos anos anteriores à chegada dos romanos e posterior à invenção da escrita cuneiforme. Convencionou-se que a partir da escrita cuneiforme o homem - seja de qual lugar fosse da Europa, África e Ásia - teria saído da pré-história e ingressado na história.

Porém, essa mesma regra não foi utilizada em relação às sociedades americanas anteriores à colonização europeia. Para esta região do planeta, a academia usou o termo pré-história para designar todo o período anterior ao ano de 1492, quando Cristóvão Colombo chegou ao continente americano.

Muitos usam o argumento de que a escrita só apareceu na América com os europeus. Na história do Brasil e da literatura brasileira costuma-se fazer referência à carta de Pero Vaz de Caminha como primeiro documento escrito produzido nessas terras. Ora, ainda assim não poderíamos considerar os anos anteriores à colonização como pré-história se seguíssemos a mesma regra que se utilizou para os outros continentes (notadamente a Europa). Porém, é um erro ainda maior afirmar que não existia formas de escrita nas Américas antes da chegada do homem branco europeu. Tanto Maias, Astecas e Incas possuíam formas elaboradas de escrita. Os Maias, por exemplo, possuíam, inclusive, um sofisticado calendário. Da mesma forma os Incas marcavam os eventos num calendário formado por cordas e nós. Atualmente, a partir do trabalho do historiador americanista Gordon Brotherston, sabe-se que povos indígenas brasileiros também possuíam um sistema de registros que não ficava atrás do modelo cuneiforme sumeriano. As pinturas corporais e em objetos cerâmicos, que realizavam, formavam signos com significados e significantes. Ou seja, as pinturas no corpo ou nas cerâmicas não eram aleatórias segundo o senso estético do seu artífice, mas  continham um código gráfico que comunicava ideias.

Desta forma, o mais correto seria não se referir ao período anterior à chega do colonizador português como pré-história brasileira, mas como "história pré-colonial do Brasil".

Diz-se que se consolidou o termo pré-história  para a América anterior aos europeu por conta da visão eurocentrista e preconceituosa daqueles. Visto que por muitos anos os historiadores sequer tiveram interesse no estudo dos povos indígenas, deixando este recorte unicamente para uma jovem ciência criada no século XIX, que foi a antropologia.



Os indígenas americanos atuais e seus antepassados possuem sua origem étnica nos grupos asiáticos orientais, denominados como mongoloides. Basta ver que os traços fisionômicos dos nossos indígenas lembram com muita proximidade os japoneses, vietnamitas, chineses e outros povos asiáticos. Porém, conforme os investimentos em pesquisa aumentaram, notadamente na arqueologia, formaram-se equipes de cientistas nacionais que descobriram diversos sítios arqueológicos no Brasil, com informações importantes e que contrariavam várias teorias vindas da academia europeia. Descobriu-se que antes dos indígenas de origem norte-asiática o território brasileiro foi ocupado por uma população semelhante aos povos africanos ou aos aborígenes australianos (negróides). Esta informação reescreveu a visão sobre a forma como as américas foram ocupadas pelos primeiros homens e as datas referentes a esta ocupação. Matéria que vem gerando intensos debates e rusgas entre pesquisadores brasileiros, norte-americanos e europeus. Um dos fósseis encontrados em sítios arqueológicos brasileiros, apelidado de Luzia, foi estudado e passou por um processo de reconstituição fisionômica que gerou a imagem da figura acima.

As arqueólogas brasileiras Niède Guidon e Maria Beltrão são responsáveis por pesquisas de ponta que vêm redesenhando a história do continente. Conforme a pesquisa avança, novo sítios vão sendo descobertos em diversas partes do país. No sítio da Serra da Capivara, no Piauí, há pinturas rupestres de 12 mil anos e outros artefatos que indicam a presença humana  há mais de 48 mil anos. No sítio do Alexandre, no Rio Grande do Norte, descobriu-se 28 esqueletos datados com 9.400 anos. Na Pedra Pintada (Pará) foram descobertos indícios da presença indígena na Amazônia com mais de 11 mil anos. Na Toca da Esperança (Bahia) houve uma descoberta que tem causado muita polêmica no meio acadêmico, ao encontrar vestígios de caçadores na Chapada Diamantina há cerca de 200 ou 300 mil anos. Em Goiás, no sítios das Araras, existem pinturas e evidências que o local é ocupado há pelo menos 11 mil anos. Em Minas Gerais, nos sítios da Lagoa Santa, muitos esqueletos foram encontrados e datados com 12 mil anos. No sítio da Pedra do Ingá, na Paraíba, há inscrições rupestres ainda sendo estudadas e avaliadas quanto à sua datação.



Um dos temas que sofreu uma direta repercussão de todas essas novas descobertas foi aquele à respeito das rotas de entrada do ser humano nos continentes americanos. Há um consenso entre os pesquisadores de que nossa espécie, o homo sapiens sapiens, surgiu na África por volta de 100 a 200 mil anos atrás e de lá migrou para as outras partes do globo. A primeira teoria sobre a entrada do homo sapiens no continente americano entende que se deu pelo Estreito de Bering, que constitui o local mais próximo entre o continente asiático e a América do Norte, que na última era glacial ficou coberto de gelo e uniu ambos os continentes, podendo ser atravessado a pé pelo homem. Posteriormente, o homem teria cruzado o Istmo do Panamá e chegado à América do Sul. Esta rota pode ser vista representada pelas setas verdes na figura acima. Esta é a visão acadêmica tradicional. 

Porém, a última era glacial teve seu apogeu há 20 mil anos atrás. E como as novas pesquisas de campo têm demonstrado, através das datações fósseis e dos demais vestígios, que o homem já habita o continente por volta de 70 mil anos, novas teorias tiveram que explicar a presença humana nas Américas quando ainda não havia uma ponte de gelo sobre o Estreito de Bering. Surgiu, então, a hipótese da chegada nas Américas pelo Oceano Pacífico. Esta hipótese prevê que o homem pré-histórico já conhecia uma navegação rudimentar, que possibilitou a viagem utilizando as inúmeras ilhas encontradas no Pacífico como escalas entre a Ásia e a América do Sul. Essa hipótese é representada na figura acima pelas setas em cor-de-rosa.

Atualmente, boa parte dos estudiosos entendem que todas essas rotas foram utilizadas pelo homem pré-histórico para chegar no continente americano.

A arqueóloga Maria Beltrão defende que o continente é habitado há muito mais tempo do que supõe estas teorias. Assevera que o homo erectus, que viveu entre 1 milhão a 300 mil anos atrás, já havia colonizado estas terras. Tese muito contestada pelos círculos acadêmicos europeus.

As atuais pesquisas empreendidas no Brasil também estão servindo para desmistificar uma série de outras teorias das academias europeias, que são carregadas de etnocentrismo. Estão sendo derrubadas teses como a "teoria da ocupação tardia dos trópicos", as "teses deterministas geográficas e ecológicas", as teses difusionistas e, ainda, as degeneracionistas. Uma excelente obra que explica todas estas teorias e como elas vêm sendo criticadas e desacreditadas foi escrita pelo historiador italiano Antonello Gerbi, cujo título em português é "O mundo novo: história de uma polêmica 1750-1900".

Para quem deseja se aprofundar mais na pesquisa sobre a pré-história brasileira, há um excelente documentário realizado em vários capítulos e que recebeu o nome de "Arqueologias: em busca dos primeiros brasileiros". Deixaremos os links para os vídeos deste documentário ao final deste texto.

Referências bibliográficas:


  • FUNARI, Pedro Paulo; NOELLI, Francisco Silva. Pré-história do Brasil. 4ª ed. São Paulo: Contexto, 2015.
  • GERBI, Antonello. O novo mundo: história de uma polêmica 1750 - 1990. 2ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
  • GOSDEN, Chris. Pré-história. Porto Alegre: L&PM, 2012.
  • NEVES, Walter Alves; PILO, Luis Beethoven. O povo de Luzia: em busca dos primeiros americanos. Rio de Janeiro: Globo, 2008.
  • PAGE, Lake; ADOVASIO, James. Os primeiros americanos. Rio de Janeiro: Record, 2010.
  • VICENTINO, Cláudio; DORIGO, Gianpalolo. História do Brasil. São Paulo: Scipione, 1997.
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Links para o documentário "Arqueologias: em busca dos primeiros brasileiros":

Vídeo 01 - Amazônia:

Vídeo 02 - caçadores coletores:
https://www.youtube.com/watch?v=JdYc7jxJpRk&t=2s

Vídeo 03 - arte:
https://www.youtube.com/watch?v=U3F3rU6pkxo 

Vídeo 04 - engenharia:
https://www.youtube.com/watch?v=SqNOLcfVShU 

Vídeo 05 - os sambaquis:
https://www.youtube.com/watch?v=URNdlEPSyhk 

Vídeo 06 - verão de 1500:
https://www.youtube.com/watch?v=EJF9mgy2VKg 

Amazônia Pré-colonial - Boa Esperança:
https://www.youtube.com/watch?v=Grco2G1lkVg 

Amazônia pré-colonial. Arqueologia e conservação:
https://www.youtube.com/watch?v=sQWGqEkROsQ

História Antiga do Brasil com Eduardo Góes Neves:
https://www.youtube.com/watch?v=v3Tg-z6q97Q 

 




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