sábado, 22 de julho de 2017

A crise global da meritocracia.


Meritocracia é uma palavra que foi utilizada pela primeira vez ou criada por Michael Young em seu livro "Rise of the Meritocracy", que vislumbrava uma organização social de um tempo futuro onde a posição social do indivíduo seria determinada pelo seu QI e esforço pessoal. Posteriormente, o termo passou a ser empregado tanto no meio empresarial, para justificar a ascensão da carreira dos empregados, quanto na esfera pública, usada para fundamentar o acesso ao serviço público por meio de concursos de provas. 

Houve um aprofundamento deste tipo de ideologia quando a meritocracia passou a critério usado pelos governos em relação às políticas públicas. Desta forma, beneficiando àqueles sobre os quais se acredita que são merecedores deste tratamento por conta de suas habilidades, inteligência e esforço.

Principalmente nos países de terceiro mundo,  onde as desigualdades sociais são abissais, fica mais evidente ao senso comum de que o sistema meritocrático é viciado e baseado em falsos pressupostos de igualdade formal e de oportunidade entre os indivíduos.

Uma dinâmica muito simples que pode ser feita em sala de aula para que a classe visualize a questão é aquela em que o professor propõe uma corrida entre ele e o aluno mais veloz escolhido pelos seus colegas. O vencedor será aquele que tocar primeiro na parede onde fica a janela, que está situada no lado oposto à parede da porta de entrada da sala. Só que os competidores, professor e aluno, partirão de pontos diferentes. O professor parte da porta de entrada e o aluno partirá do início do corredor de acesso às salas de aula. Será provável o aluno não aceitar o desafio sob estas condições. Se aceitar, o professor mesmo estando velho, gordo e com artrite em um dos joelhos irá bater primeiro. E o "mérito" da vitória é certamente do professor, pois correram sob as regras socialmente pactuadas.

No exemplo acima, o professor só perderá a prova por acidente, ou tendo uma queda ou mesmo sofrendo um infarto. Porém, esta vitória acidental do aluno seria o ponto fora da curva, algo eventual e pontual. Contudo, quando ocorre uma dessas situações meramente acidentais, na vida social e econômica, os meios de comunicação propagandeiam o feito como justificativa e legitimação do critério meritocrático. É claro que não são noticiados os inúmeros casos onde, mesmo se esforçando muito, as pessoas não conseguem reconhecimento e vida digna. Neste sentido, surgem algumas lendas urbanas como o do homem pobre que passou para o vestibular de medicina achando apostilas no lixo, dentre outras histórias fantásticas. A classe média é a principal destinatária deste discurso midiático. Por isso, ela passa a sentir tanta identificação com a agenda da elite financeira, pois acredita que com trabalho duro um dia se tornará integrante daquele seleto grupo. Só que os meios de comunicação não tornam claro que o número dos integrantes da classe média que tiveram um decréscimo no padrão de vida e se tornaram pobres é esmagadoramente maior do que os casos pontuais de alguns que se tornaram milionários.

Na Europa, finalmente, acontece que a "ficha está caindo" para boa parte da nova geração de cidadãos provenientes das classes médias que buscam reconhecimento profissional e posição social através dos estudos e do esforço. A chamada geração "milenium", daqueles perfeitamente adaptados às novas tecnologias e com educação formal de pós graduados, está desencantada e frustrada com o mercado de trabalho após as reformas trabalhistas, que geraram empregos com poucas garantias, baixa remuneração (incompatível com a expectativa gerada pelos estudos) e funções que não conduzem à satisfação pessoal. A preparação intelectual não está sendo correspondida pela nova realidade das relações de trabalho. De forma que na Espanha se fala que a próxima geração será a "nem nem", que nem trabalha e nem estuda. A taxa de desemprego na Espanha chegou a 40% , nos EUA os salários são os mais baixos dos últimos 30 anos e na Itália há quase que 5 milhões de desempregados em situação de pobreza absoluta.

O economista Guy Standing, professor na Universidade de Londres, criou o termo "precariado" para se referir a esta classe emergente em todo o mundo e que está sob a insegurança de empregos não permanentes e com pouquíssimas garantias trabalhistas. Em seu livro "A corrupção do capitalismo: por que rentistas prosperam e o trabalho não recompensa", ele analisa os motivos pelos quais hoje vivemos num sistema onde o trabalho duro e o talento não são premiados. Explica que isto teve origem na política econômica gestada nos anos 80 e 90 por economistas  de matriz neoliberal. Eles criaram um sistema rentista, baseado em direitos privados, que afastou a sociedade de uma verdadeira situação de mercado livre. Assim, a competição no mercado livre de trabalho é fictícia no capitalismo atual. Isto ocorre porquanto os proprietários do grande capital estão extraindo rendas do resto da economia e da sociedade. Como consequência, há pessoas super capacitadas e brilhantes compondo o precariado e, por outro lado, gente sem nenhum talento ganhando milhões.

As reformas trabalhistas que geraram esta grande frustração às novas gerações europeias estão chegando agora no Brasil e na América do Sul, juntamente com a onda conservadora. O Congresso Nacional aprovou a reforma trabalhista que retirou as garantias mínimas dos trabalhadores asseguradas pela CLT, prevendo a supremacia do negociado sobre o legislado, e ainda virá a reforma previdenciária. A população, em geral, não se deu conta de que a mesma lógica está sendo instalada por aqui. Acontece que esta elite rentista que tem interesse nas reformas se utiliza de um grande sistema difusor de ideias para obter o consenso e a adesão de ampla maioria da população em torno de sua agenda. Diariamente os grandes canais de televisão, as rádios, os tabloides, revistas e grandes sites jornalísticos fazem o papel de moldar as mentes da audiência.

Desta forma, resta a cada pessoa, cuja visão despertou para a realidade, fazer o papel de realizar estes contrapontos através das redes sociais, dos pequenos blogs, dos grupos e bate-papos, para nos entrincheirar nesta guerrilha da informação. 

Artigo sobre a reforma trabalhista no Brasil:
http://operamundi.uol.com.br/dialogosdosul/reforma-trabalhista-na-espanha-e-no-brasil/15072017/ 

Artigo sobre a pobreza na Itália:
http://exame.abril.com.br/economia/quase-5-milhoes-de-italianos-vivem-em-pobreza-absoluta/ 

Artigo sobre as consequências da reforma trabalhista na Espanha:
http://www.dmtemdebate.com.br/reforma-trabalhista-espanhola-faz-cinco-anos-assim-e-a-geracao-de-jovens-desencantados-que-ela-deixou/ 

Entrevista com o economista inglês Guy Standing:
http://www.ihu.unisinos.br/569536-estamos-rumo-a-um-sistema-onde-trabalho-duro-e-o-talento-nao-sao-premiados-afirma-guy-standing 

Participe do grupo "prophisto" de História Geral & Brasil no facebook:
https://www.facebook.com/groups/prophisto/ 

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